Nesse mês de outubro a Série Mulher Cristã, fará uma homenagem às mulheres reformadoras que contribuíram nos desdobramentos da Reforma Protestante, elas foram escritoras apologetas, humanitárias, piedosas, esposas e mães, cheias de fé, altruístas e mártires convictas. Acima de tudo, mensageiras do Evangelho de Cristo.
A Reforma Protestante do século 16, liderada por Martinho Lutero (1483-1546), um monge alemão agostiniano que queria abrir uma discussão reformatória na própria igreja romana na Alemanha, foi marcada pelas 95 teses afixadas na porta da Igreja do Castelo Wittenberg em 31 de outubro de 1517.
Lutero traduziu a Bíblia do latim para o alemão, pois acreditava que todos os fiéis deveriam ter acesso às Escrituras Sagradas.
A Reforma Protestante foi um divisor de águas no cristianismo ocidental. Outros reformadores, como João Calvino, que liderou a reforma na França (1509-1564); Philipp Melanchthon, colaborador e amigo de Lutero (1497-1560); Ulrico Zuínglio, que liderou a reforma na Suíça (1484-1531); e John Wycliffe, que elaborou novas interpretações da doutrina cristã, influenciaram Lutero. Jan Hus, considerado um dos primeiros reformadores (1369-1415), também figura entre os principais nomes dessa época.
Mas onde estavam as mulheres nesse período tão importante para o Cristianismo?
De acordo com a escritora e teóloga Rute Salviano, há evidências de que as mulheres durante o período da Reforma, ao terem acesso às Escrituras, se encantaram com a doutrina da salvação pela fé e a divulgaram. No entanto, sua participação não foi reconhecida nem elogiada, uma vez que, desde os primórdios do cristianismo, a mulher era vista como uma “Eva”, a responsável por levar o homem ao pecado e à sua queda. “Ela seria incapaz intelectualmente, mais débil fisicamente e mais propensa às tentações sexuais” (ALMEIDA, p. 19, 2021).
De fato, a Reforma não modificou o papel tradicional da mulher, que se limitava às tarefas domésticas, à educação dos filhos e ao silêncio na igreja. No entanto, a abertura à leitura bíblica possibilitou o acesso à educação religiosa. A perseguição e o martírio desenvolveram sua principal atribuição como cristã: a de comunicadora da fé (ALMEIDA, p. 20, 2021). Neste artigo, destacaremos a liderança de Catarina von Bora ao lado de seu esposo Martinho Lutero. Lutero enfrentou corajosamente as práticas antibíblicas da Igreja Católica Romana, o que marcou o início da Reforma Protestante. Desde 31 de outubro de 1517, sua vida não foi mais a mesma, e o grande êxito que obteve em sua jornada ministerial nos anos seguintes contou com o fiel apoio de sua esposa, “querida Kate” (Catarina von Bora), como ele a chamava carinhosamente.
Catarina von Bora nasceu perto de Leipzig, na Alemanha, em 1499. Filha de Hans von Bora e Anna von Haugwitz, tinha três irmãos e provavelmente uma irmã. Sua mãe faleceu quando Catarina tinha apenas 5 anos, e logo depois, seu pai se casou novamente, enviando-a a um convento beneditino em Brehna, onde seria criada e educada pelas freiras. Aos 10 anos, por decisão do pai, Catarina foi transferida para o convento cisterciense de Marienthron, em Nimbschen. Ela se tornou uma freira enclausurada aos 16 anos, mas sua qualidade de vida piorou, pois o espaço era pequeno e desconfortável.
Com o grande acontecimento da Reforma, os escritos de Lutero se espalharam por toda a Europa, chegando aos conventos e mosteiros, ainda que de forma infiltrada. Assim, Catarina teve acesso aos ensinamentos da Reforma. Nesse período, cerca de 44 freiras viviam no convento em Nimbschen, onde Catarina passou cerca de 13 a 14 anos. O convento, além de várias propriedades, possuía também 367 relíquias que eram veneradas. Catarina e mais 11 freiras foram impactadas pelas doutrinas da salvação pela fé e, com uma consciência inquieta, buscaram o conselho de Lutero, que as incentivou a fugir e garantiu que as ajudaria.
De acordo com Salviano, Lutero contou com a assistência de Leonard Koppe, um comerciante que entregava barris de arenque defumado e era conselheiro municipal de uma cidade situada entre o convento e Wittenberg. Ao chegarem em Torgau, foram bem recebidas pela população local. Três das ex-freiras logo puderam retornar para perto de suas famílias (Gertraud von Schellemberg, Else von Gauditz e uma terceira de nome desconhecido). As outras nove seguiram viagem para Wittenberg, onde foram acolhidas pelos reformadores, incluindo Martinho Lutero e Filipe Melanchthon, que procuraram famílias dispostas a receber as moças, agora libertas do cativeiro do convento.
Catarina von Bora tinha 24 anos quando saiu do convento. Por um tempo, ela morou com a família de Filipe Reichenbach e, posteriormente, até seu casamento com Lutero, na casa do grande pintor e farmacêutico Lucas Cranach e sua esposa, Barbara Cranach. Ela permaneceu com eles por dois anos e se tornou uma grande amiga de Barbara. Nesse período, trabalhou e provavelmente aprendeu muito sobre a vida em Wittenberg, não apenas sobre economia doméstica, mas também sobre o conteúdo da mensagem reformatória, que Cranach transformava em arte em seu ateliê. É interessante notar que o retrato mais conhecido de Catarina von Bora foi pintado por Lucas Cranach.
Acredita-se que Catarina von Bora era muito atraente, e seu primeiro amor foi um jovem chamado Jerônimo. Eles se apaixonaram e tinham planos de se casar, mas a família dele se opôs, e ele desistiu do matrimônio. Após isso, Catarina se mudou para a casa de outra família, onde trabalhou cuidando de crianças, enquanto Lutero, com a ajuda do amigo Nicolaus von Amsdorf, tentava encontrar um esposo para ela. Quando sugeriram que ela se casasse com o pastor Casper Glatz, Catarina recusou, pois não tinha nenhuma afeição por ele. No entanto, ela afirmou que aceitaria se casar com Nicolaus ou, se ele não quisesse, com Lutero.
Supõe-se que Lutero não havia considerado ter uma esposa naquele momento, apesar de ser contrário ao celibato dos clérigos. Contudo, o reformador alemão não hesitou e, mesmo sendo 16 anos mais velho, pediu Catarina em casamento. A princípio, os dois não estavam apaixonados, mas o amor surgiu com o tempo.
No dia 13 de junho de 1525, foi realizada a cerimônia de casamento, apenas 12 dias após o pedido. Lutero tinha 42 anos e Catarina, 26. O casal se estabeleceu no antigo mosteiro agostiniano de Wittenberg, que receberam como presente do príncipe Frederico. Eles se amaram mais do que poderiam imaginar. No entanto, enfrentaram forte oposição à união, devido à diferença de idade, ao fato de o matrimônio ser considerado um escândalo e ao temor de que Lutero pudesse ser morto a qualquer momento. No entanto, nada impediu que o casamento acontecesse.
Catarina foi uma grande administradora e “hospedeira” de seu lar. Em várias conversas e discussões com estudantes reformadores que aconteciam ao redor de sua mesa, Lutero disse: “Eu não trocaria minha Kathe nem pela França nem por Veneza. Ela me foi dada por Deus, assim como eu fui dado a ela.” O pouco que sabemos sobre Catarina von Bora está registrado nos escritos de Lutero e nas cartas que ele escreveu para ela. Infelizmente, as cartas escritas por ela não foram preservadas, mas o reformador mencionou a esposa várias vezes em seus escritos.
A vida de ambos mudou significativamente. Catarina era disciplinada e organizada, enquanto Lutero vivia de maneira mais despreocupada e desordenada. Ela transformou o convento negro em um lar acolhedor. A primeira coisa que fez, pouco tempo após o casamento, foi trocar todos os colchões de palha, pintar as paredes dos quartos com cal e mandar construir um porão. Ela também construiu uma cervejaria, preparou a horta e o pomar da casa, e Lutero teve que arranjar sementes. Além disso, Catarina mandou cavar um poço e, em 1541, instalou um banheiro, um grande luxo para a época.
Catarina não só administrava as finanças da família, mas também era empreendedora, adquirindo terras para novos investimentos em agricultura, plantações e criação de animais. Embora Lutero participasse da administração, a maior responsabilidade recaía sobre Catarina, que tinha muitos afazeres na casa (anteriormente um convento) de 40 quartos, constantemente ocupados por homens e mulheres refugiados, estudantes universitários e pelos seis filhos do casal. Lutero também abrigou sete sobrinhos e mais quatro filhos de um amigo que havia perdido a esposa. Os demais quartos eram alugados para estudantes de Lutero.
Catarina contava com criados para auxiliá-la nas tarefas e acordava às 4 horas da manhã, o que fez com que Lutero a chamasse de “a estrela da manhã de Wittenberg.” Ela se sentia realizada em seu trabalho como esposa e mãe. O casal teve três filhas e três filhos: João, Elizabeth, Madalena, Martim, Paulo e Margareth. Através de quadros ilustrativos, pode-se recordar que a família teve momentos felizes em casa. No entanto, a perseguição por conta da Reforma e a perda de duas filhas — Elizabeth, que faleceu antes de completar um ano, e Madalena, a alegria do lar, que partiu com apenas 12 anos — trouxeram ainda mais sofrimento à família.
Catarina auxiliou Lutero em seus momentos de depressão e clausura. Ele enfrentava constantes perseguições e, em várias ocasiões, era apedrejado. Catarina cuidava de suas feridas com cataplasmas e massagens, além de se preocupar em garantir que ele se alimentasse, mesmo quando estava imerso em seus estudos.
Em família, eles cultivavam o hábito de cantar louvores e fazer leituras da Bíblia. O casal educou seus filhos com muito carinho. Lutero expressou seu amor por eles em suas cartas, enquanto Catarina não negligenciava as crianças e cuidava delas de maneira exemplar.
Catarina von Bora não escreveu nenhum livro nem jamais pregou um único sermão, mas seu inestimável auxílio possibilitou que seu marido realizasse feitos notáveis na história da igreja (ALMEIDA, p. 128, 2021). Ela gostava de ler, e Lutero a incentivou a estudar a Bíblia, incluindo a memorização de algumas passagens. Com isso, Catarina adquiriu sabedoria e foi capaz de oferecer bons conselhos a Lutero, agindo e falando de forma apropriada nos momentos certos.
Ao longo dos anos, Lutero não se cansou de exaltar os valores e as qualidades da companheira em cartas e escritos. Sobre ela, ele escreveu: “[Minha querida Kate] me ajuda em meu trabalho e, acima de tudo, ama a Cristo. Depois dele, ela é o maior presente que Deus já me deu nesta vida. Se algum dia vierem a escrever a história de tudo o que tem acontecido (a Reforma), espero que o nome dela apareça junto ao meu. Eu oro por isso […]”.
Contudo, os dias se tornaram mais difíceis para Catarina com a morte de Lutero em 18 de fevereiro de 1546, longe de casa, o que impediu que ela estivesse ao seu lado antes do falecimento. Catarina ficou devastada pela perda do marido e, ao longo do tempo, sua vida se tornou ainda mais difícil devido a várias perdas financeiras, obrigando-a a depender de ajuda para sobreviver com seus dois filhos menores. Apesar disso, sua fé em Deus não desmoronou.
Em 1552, ao fazer uma viagem para Torgau com os filhos mais novos, a fim de escapar de um surto de peste negra, os cavalos da carruagem se assustaram e dispararam descontroladamente. Catarina foi arremessada para fora e caiu em uma vala, machucando gravemente as costas. Sua filha Margarethe, de 18 anos, cuidou dela, acreditando que a mãe iria se recuperar. No entanto, Catarina não se recuperou e faleceu três meses depois do acidente, em 20 de dezembro de 1552, aos 53 anos.
Catarina von Bora desempenhou um papel fundamental no sucesso de Martinho Lutero, e é uma perda significativa não mencionar ou diminuir sua contribuição de liderança ao lado do reformador. Ela foi uma mulher transformada pela verdade do evangelho, que teve a coragem de testemunhar sua fé em tempos incertos e difíceis para o contexto das mulheres. Catarina trabalhou de maneira diligente e cooperou com o progresso da Reforma, tornando-se um farol nos momentos sombrios de Lutero, animando-o e confortando-o com sua fé e devoção a Deus. Com certeza, o legado dela atravessa gerações, deixando-nos um grande exemplo de mulher cristã, convicta de seu propósito em Cristo.
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Rute Salviano; PINHEIRO, Jaqueline Sousa. Reformadoras: mulheres que influenciaram a Reforma e ajudaram a moldar a igreja e o mundo. 1. ed. Rio de Janeiro: GodBooks; Thomas Nelson Brasil, 2021.
Catarina von Bora: Uma Mulher Forte, Corajosa e Empoderada do movimento da Reforma, do século XVI. Disponível em: https://revista.fuv.edu.br/index.php/reflexus/article/view/500/407> Acesso em 16 out 2024.
Caroline Fontes é formada Bacharel em Teologia; com pós- Ciência da Religião, formada em Pedagogia – UERJ, pós-graduação em Neuropsicopedagogia – FAMEESP. Reside no Rio de Janeiro, casada com pr. Ediudson Fontes, mamãe de Calebe Fontes. Diaconisa na Igreja Assembleia de Deus – Cidade Santa, e idealizadora do Clube de Leitura da Mulher Cristã- Enraizadas em Cristo.
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