O primeiro verso do Salmo 46 é um dos mais conhecidos e muito citado em tempos de provações. É uma poderosa declaração de fé e confiança quando tudo parece contrário e o mundo está prestes a ruir. Há uma história gloriosa de livramento por trás dessa oração de louvor escrita pelos filhos de Coré.
Sua composição se deu durante o reinado de Ezequias, após a destruição do exército de Senaqueribe — o rei da Assíria que ameaçava invadir Jerusalém —, aproximadamente em 710 a.C. O exército assírio já havia invadido e dominado várias cidades fortificadas de Judá e estava às portas de Jerusalém para fazer o mesmo. Sem responder à afronta do arrogante rei da Assíria, Ezequias recorre ao Senhor que promete, por intermédio do profeta Isaías, proteger a cidade santa.
“Portanto, assim diz o Senhor acerca do rei da Assíria: Não entrará nesta cidade, nem lançará nela flecha alguma. […] Pelo caminho por onde vier, por esse voltará” (2Reis 19:32-34). E assim foi. Na mesma noite, após essa palavra, o anjo do Senhor matou 185 mil soldados do exército inimigo que cercava Jerusalém. “Levantado-se pela manhã cedo, viram que todos eram cadáveres. Assim Senaqueribe, rei da Assíria, levantou o acampamento e partiu” (2Reis 19:35-36). Essa manhã gloriosa para Jerusalém foi registrada no Salmo 46:5: “Deus a ajudará ao romper da manhã”.
Uma fortaleza poderosa
A palavra traduzida por fortaleza no verso 1 é oz que significa força, poder. A palavra para fortaleza é maoz e, embora não seja a palavra original, isso faz pouca diferença no sentido do texto. A escolha da palavra fortaleza prevaleceu em várias traduções e foi usada por Martinho Lutero na composição de um de seus hinos mais famosos, baseado no salmo 46, cujo título original é Fortaleza Poderosa é o nosso Deus. Na versão em português, recebeu o título de Castelo Forte.
Como muitos de nós, Lutero também obteve conforto nas palavras desse salmo em tempos difíceis. Por conta das doutrinas da Reforma Protestante, muitos seguidores de suas ideias sofriam perseguição por parte da Igreja no início do século XVI. Em uma assembleia convocada pelo imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Carlos V, em 1521, para discutir os ensinos do reformador, havia o risco de ser condenado à prisão ou morte. Lutero temeu por si e foi por volta desse tempo que teria composto seu hino, inspirado nas palavras desse maravilhoso salmo, no qual encontrara verdadeira força diante da provação.
Andando por fé
O Salmo 46 é uma expressão de louvor e fé, especialmente no início: “Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia. Pelo que não temeremos, ainda que a terra se mude, e ainda que os montes se transportem para o meio dos mares; ainda que as águas rujam e se perturbem, ainda que os montes se abalem pela sua braveza” (v.1-3). O autor usou situações imaginárias na natureza para exprimir cenários impossíveis de serem dominados pelo homem. Foi uma metáfora para retratar a impotência dos habitantes de Jerusalém ao ser cercada por um exército muito mais forte e de um número esmagadoramente superior, como o de Senaqueribe.
Entretanto, “Deus está no meio dela, não será abalada” (v.5). Em outras palavras, quando tudo nos for contrário e o caos estiver irrompendo, não devemos olhar para as adversidades que nos cercam; seja para as águas que rugem, para os montes que se abalam ou para o número de inimigos que nos rodeiam. Precisamos olhar para dentro de nós e saber que, assim como Deus está no meio de Jerusalém, Ele está no meio de nós; não seremos abalados. Não devemos olhar para fora, mas para dentro, onde reside a fonte desse poder. Andamos por fé e não por vista.
Relaxando nas Tribulações
O verso 10 contém o ponto central da mensagem do Salmo 46 que é uma exortação de fé e confiança. “Aquietai-vos e sabei que Eu sou Deus.”. O verbo traduzido por aquietar-se é mais amplo no original. Significa retirar-se, refrear ou ainda relaxar. É o mesmo verbo usado por Deus em 2Samuel 24:16, quando ordenou ao anjo para retirar sua mão de sobre Jerusalém e do juízo pendente que estava para trazer. Equivale a dizer “relaxe sua mão”.
A melhor tradução para o Salmo 46:10 seria: “Relaxem e saibam que Eu sou Deus!”. É realmente um convite ao descanso em meio às tribulações. Não é de surpreender que a tradução da Vulgata, em latim, use o termo vacate que significa tirar folga ou férias. Quando o cenário é caótico e não há nada mais que possamos fazer, Deus nos convida a sair de cena, tirar férias e deixar Ele ser Deus. Somente assim, poderemos conhecer seus milagres.
A propósito, algo semelhante disse Moisés a Israel ao sair do Egito, quando se encontrava pressionado entre o mar e o exército de faraó que o perseguia. Era uma situação impossível de se livrar e apenas um milagre poderia salvar o povo. Moisés, então, diz: “Estai quietos e vede o livramento do senhor que hoje vos fará” (Êxodo 14:13).
O mesmo Deus que operou milagres ao abrir o Mar Vermelho para Israel passar, sepultando faraó e seus soldados, e exterminou, em uma só noite, os inimigos de Ezequias está presente hoje. Como finaliza o Salmo 46: “O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio” (v.11). Ele continua sendo a força e o socorro bem presente na angústia para todos os que nele confiam.
Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br.
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